Faço este intróito para publicar o texto escrito a vinte e nove de Maio do ano passado sobre o Grupo Teatral Freamundense (G. T. F.) e a opereta Gandarela que publiquei no meu blogue nesse dia. Resolvi repeti-lo porque ali revelo factos e estórias vividas em mil, novecentos e sessenta e três. Entre esse ano e hoje distanciam-se cinquenta anos. E cinquenta anos é muito tempo para uma colectividade, mais a mais quando o Governo, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesias retiram a essas mesmas colectividades parte do subsídio que atribuíam.
É também sabido - principalmente pela maioria dos habitantes de Freamunde - que de dez em dez anos o G. T. F. põe em cena a opereta Gandarela. Evento de louvar e, este ainda mais, porque vem recordar e homenagear o seu mentor falecido há anos. Por esse motivo e, julgo ser bastante, para incluir neste texto este intróito onde quero lembrar Fernando Santos (Edurisa Filho), para mim, o expoente máximo da cultura Freamundense.
Relato nele - texto - como disse factos e estórias próprias da época. E… como as vivi. Hoje em dia há um sem número de coisas a que socorremos para passatempo. Naquele tempo era os programas de televisão. Só havia a RTP e só um canal. Ia dizer o primeiro mas nem isso se podia dizer que para se dizer primeiro tem de haver pelo menos um outro. Mas não. Era tudo a preto e branco como era a preto e branco a situação do País. Que faria a Gandarela! Lugar pobre mas honrado.
Por aqui fico. Já vou um pouco extenso mas não queria deixar, aos que me lêem, notícias do cinquentenário da Opereta Gandarela que vai a cena dia vinte e dois de Dezembro de dois mil e treze.
Recordar é viver
Relato nele - texto - como disse factos e estórias próprias da época. E… como as vivi. Hoje em dia há um sem número de coisas a que socorremos para passatempo. Naquele tempo era os programas de televisão. Só havia a RTP e só um canal. Ia dizer o primeiro mas nem isso se podia dizer que para se dizer primeiro tem de haver pelo menos um outro. Mas não. Era tudo a preto e branco como era a preto e branco a situação do País. Que faria a Gandarela! Lugar pobre mas honrado.
Por aqui fico. Já vou um pouco extenso mas não queria deixar, aos que me lêem, notícias do cinquentenário da Opereta Gandarela que vai a cena dia vinte e dois de Dezembro de dois mil e treze.
“Estávamos no ano de mil novecentos e sessenta e três. Freamunde não era o que é hoje, aliás, o mundo estava em pleno desenvolvimento. Portugal tinha recebido um revés nas suas províncias ultramarinas. A quatro de Fevereiro de mil novecentos e sessenta e um dá-se a revolta em Luanda, com ataques à Casa de Reclusão, ao quartel da PSP e à Emissora Nacional, acção considerada como o início da luta armada em Angola. Já tínhamos o assalto ao paquete Santa Maria, levado a cabo pelo Capitão, Henrique Galvão, a evasão a Goa, Damão e Diu, o que acabou por acontecer em Dezembro com a sua tomada por parte da India.
A RTP estava em franco desenvolvimento mas ainda não chegava a todos as localidades de Portugal Continental. As notícias eram dadas através da RDP durante as vinte e quatro horas e a televisão só abria os seus estúdios a partir das dezanove horas. Ansiávamos por notícias. Muitas famílias tinham os seus familiares a cumprir o serviço militar nas províncias ultramarinas, principalmente em Angola, Moçambique e Guiné e nada se sabia, para além da correspondência trocada entre ambos. O senhor Hernâni Cabral, de tempos, em tempos, expunha um filme que era exibido em frente da barbearia do Rosário e Aprígio da “Riqueta” na casa pertença da família Torres, àquela época. A parede exterior fazia de tela. Era um mar de gente a assistir aos filmes, geralmente sobre Charlot e no início os comentários davam-nos uma panorâmica sobre a vida mundial.
Para ocupar o tempo e a vida cultural dos Freamundenses o senhor Fernando Santos (Edurisa Filho) e outros, resolveram criar uma peça de teatro e assim levantar de novo o Grupo Teatral Freamundense. A peça, uma opereta, teve um nome ousado: Gandarela. Constava-se que era uma sátira sobre aquele lugar. Sobre ela nada se sabia. Parece que todos os actores foram incumbidos de nada revelar o que acabou por acontecer.
No lugar da Gandarela começou a criar-se grupos de oposição pois os residentes, a maioria ali nascida, não queria que andassem a gozar com a sua desdita. Sabiam que eram de um lugar, em que a maioria dos outros, se julgavam superiores, caso do lugar da Feira, que tinha a sorte de ser o centro da vila. Mas como em tudo, para haver ricos tem de haver pobres, senão não se diferenciava as classes sociais, à Gandarela aconteceu a sina dos mais humildes.
Entre os seus filhos havia de tudo: pedreiros, trolhas, sardinheiras, vendedores de feiras, operários fabris e alguns que viviam à custa do alheio. O receio deles era serem retratados pelos maus motivos o que acontecia no teatro de revista que nos apresentava a RTP e as radionovelas. A família dos Loreiras, com o Quim e o Abílio à cabeça, tudo fizeram para saber se era essa a intenção, chegando a solicitar ao seu irmão Teodoro, que era empregado da fábrica do Calvário, pertença do sogro de Fernando Santos, que ali também era gerente, do que constava a peça. De nada valeu. A peça continuava nos segredos dos deuses.
Os dias e os meses decorriam assim como os ensaios do teatro que agora eram duas vezes por semana. Ultimavam-se os preparativos e o mês de Dezembro estava à porta. Se por parte dos residentes do lugar da Gandarela havia curiosidade sobre o que a peça retratava, por parte do encenador e restantes actores, havia uma certa ânsia sobre a forma como a peça ia ser recebida por parte dos Freamundenses, principalmente os residentes da Gandarela.
Até que chegou o dia vinte e dois de Dezembro de mil novecentos e sessenta e três. Era um domingo. Neste tempo trabalhava-se de segunda-feira a sábado, das oito horas às dezassete, havendo firmas que tinham um horário diferente: das sete às vinte horas, caso da indústria têxtil. Sabia-se que ia ser uma enchente. Os bilhetes estavam quase todos vendidos, poucos eram, os disponíveis nas bilheteiras. Abriram-se as portas para dar entrada ao público. Havia um ou outro morador da Gandarela que foi assistir à estreia. Acompanhava-os um certo receio. Mas queriam ser dos primeiros a saber o que havia para mostrar da sua Gandarela.
O lugar da Gandarela era um amontoado de casas que os anos foram consumindo, ruas muito estreitas, gente pobre mas laboriosa, alguns com idade avançada, que se dedicavam aos ofícios da época, algumas mercearias que também se dedicavam ao serviço de tabernas, aonde se juntavam alguns clientes a dar azo à sua desdita, vivas às vitórias do seu Sport Clube Freamunde onde vários dos seus filhos o representavam. E que jogadores se tornaram! Basta referir o Quintela, Ivo e os Mirras. Era disto que os seus moradores gostavam de ver retratado assim como os amores e desamores, os que partiram para a guerrilha do ultramar, enfim um pouco de tudo.
Entre actores foi dita a palavra talismã: "merda". Todos a disseram em uníssono, o que representava um bom início. Soaram as pancadas de Molière. Faltava correr as cortinas e entrar em cena os primeiros actores. Todos ficaram deslumbrados! Actores e espectadores. Os primeiros pela recepção que tiveram. Ainda não tinham pronunciado uma palavra e já lhes batiam palmas. Em Freamunde é assim. Quando se vê ou se ouve ser referida pelas melhores acções, os Freamundenses não resistem e demonstram um dos seus melhores sentimentos: a gratidão. Era o que acontecia nesse momento. Os cenários e caracterização já valia o tempo dispensado e o dinheiro gasto na aquisição do bilhete. Até os moradores da Gandarela que ali se encontravam mostravam-se encantados com o que viam. Dali para a frente era estar atento ao que era dito.
Há medida que o espectáculo decorria o agrado era cada vez maior. Além dos cenários que davam uma real imagem da Gandarela as canções tocavam nos sentimentos daquela gente. “Gandarela, Gandarela! / De ti muito mal se diz, / mas a verdade revela. / Que mais vale uma chinela. / Que um sapato de verniz!... / Deixa lá falar quem fala / Que a inveja é que os faz falar! / Não é isso que te rala, / Pois a ti ninguém te cala / Se tens que desabafar...” Era e é verdade. Não são um povo impostor. Se tem que desabar, desabafam, ainda que com isso sejam prejudicados.
Acabou o primeiro acto. Os espectadores aproveitaram para apanhar ar e fumar um cigarro. A maioria era para desabar e saber a opinião dos restantes sobre o que estavam a ver. Alguns mais velhos lembravam que fez bem a interrupção de dez anos. O que agora viam era de uma verdade nua e crua sobre um lugar que conheciam bem. Nas outras peças interpretadas há dez anos sabiam o que elas relatavam mas não tinham conhecimento de causa, a não ser na revista “Freamunde é Coisa Boa”.
À medida que o espectáculo decorria em que os cenários eram mudados para dar lugar a outras cenas a admiração era maior. Não havia dúvidas. Fernando Santos tinha unicamente a intenção de valorizar um lugar pobre de Freamunde em ex-libris. Demonstrar que aquela gente muitas vezes ironizada com frases: és da Gandarela... nota-se bem! Não correspondia à verdade. Os músicos da Banda de Freamunde acomodados no porão davam os seus acordes nas várias canções sobre a Gandarela.
Eis a Gandarela / Olhai pra ela /Se quereis aprender / Como, num momento, / O sofrimento / Se muda em prazer!... / Lá vai jovial / Não tem rival / Pra cá da serra da Agrela! / Ninguém a confunde / E até Freamunde / Não era nada sem ela!...” O público tinha tomado o tom da música e trauteavam as canções. Era bonito. Parecia uma simbiose.
O espectáculo caminhava para o seu fim. Via-se nos rostos e olhos, quer de actores e público, um brilho rasgado de alegria. Alguns diziam: passava aqui a noite a ver este espectáculo. Outros, que parecia que se estava numa sala de teatro da capital a ver uma companhia profissional tal era o rigor que os actores empregavam aos seus papéis. Até que se ouve através de som de fundo e aqui o público apercebeu-se do seu final.
Ah, gente da Gandarela! / Bairro pobre, mas honrado! / Vale mais a tua chinela / Que pantufa de fivela / Ou sapato envernizado!... / És pobre. Porém espanta / Tua alegre condição!... / Gente que sofre e que canta: / A alma junto à garganta / E, nas mãos o coração... / Gente tão mal compreendida, / Que não a querem compreender!... / Mostra aos outros o que é vida: / Diz-lhes que é prazer e lida / Diz-lhes que é rir e sofrer!”
O público, todo de pé aplaudia. Os actores tiveram de vir por várias vezes ao palco para receber os aplausos e agradecer a bondade deles. Na última aparição trouxeram o seu encenador, Fernando Santos, e os aplausos eram tantos que a sala parecia que vinha abaixo. Aqui ouviu-se os poucos moradores da Gandarela que assistiram ao espectáculo, dizerem: Bravo, a Gandarela e o seu povo é isso! O que confirmo. Foi naquele lugar que vim ao Mundo.
Mas, mal sabíamos a fama que ia ter a nossa Gandarela.”
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