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Saturday, August 24, 2013

Abortos intelectuais:

O assunto não faz parte da agenda nem da ordem do dia e, tão pouco, ocupa lugar nas preocupações dos portugueses. O desemprego que cresce descontrolado, a economia que não avança, os novos cortes nas pensões e nos salários que aí vêm, a degradação de serviços públicos essenciais como sejam o Serviço Nacional de Saúde ou a escola pública, a falta de dinheiro para pôr comida na mesa é, natural e legitimamente, o que aflige milhões de cidadãos que, porque pobrezinhos, nem sequer se podem dar ao luxo de sonhar com um fim de semana na Comporta para brincar aos ricos. E nem os mais recentes indicadores económicos, inegavelmente positivos, abafam esta realidade.

Mas há sempre quem seja capaz de surpreender pela desonestidade e ausência de noção do sentido de oportunidade. Nas páginas do Público de ontem, o padre Gonçalo Portocarrero de Almada, ou melhor, D. Gonçalo Nuno Ary Portocarrero de Almada, 4.º visconde de Macieira e sacerdote secular da prelatura do Opus Dei, dedica-se a um exercício, lamentável e chocante, de falta de ética e de honestidade intelectual mas, também, de cobardia. Que, à luz dos princípios da sagrada Igreja Católica, deveria ser classificado como pecado.
Vamos por partes. O dito presbítero decide, de pleno direito, escrever sobre esse assunto premente nos dias de hoje que é a interrupção voluntária da gravidez. Para tal, socorre-se da tese de licenciatura de Álvaro Cunhal "O Aborto, Causas e Soluções", defendida em 1940 em circunstâncias históricas que são conhecidas e me dispenso agora de recordar. A dado passo, o padre Gonçalo cita o referido trabalho - "o aborto é um mal. Nisto estão de acordo todos os escritores" -, para extrair desta afirmação de princípio a conclusão de que "sendo o aborto um mal, para Cunhal e, segundo ele, para "todos os escritores" que sobre este tema se pronunciaram, não faz portanto sentido defender um pretenso direito ao aborto, porque não há nenhum direito ao mal". Mais adiante, e talvez por ter nascido em Haia, ter estudado em Madrid e em Roma e nunca ter tido o azar de viver em Portugal durante a ditadura, o padre Portucarrero enaltece, de forma despudorada, o facto de no Estado Novo haver até "alguma liberdade de opinião e de expressão nos meios universitários", porque até se permitia a um aluno finalista de Direito, estando preso por ser comunista, a defesa de uma tese em que se faz a apologia do sistema soviético.
Gonçalo Portocarrero sabe que eu sei que ele sabe que nenhuma mulher aborta de ânimo leve ou porque sim. Sabe que, apesar do folclore, tantas vezes pernicioso a um lado e a outro das barricadas morais, ninguém defende o aborto livre do tipo "a barriga é minha" ou "em cada mulher uma abortadeira". O que se pretende e pretendeu, sem prejuízo do inalienável direito à vida, é acabar com uma prática sucedânea da santa inquisição em que, como aconteceu nos julgamentos da Maia em 2002 ou de Aveiro em 2004, as mulheres sejam humilhadas e devassadas em público. Isto já para não falar daquelas, demasiadas, que morreram por serem forçadas a recorrer ao vão de escada. E isso é, a par de outros, um avanço civilizacional que não tem preço. O exercício do sacerdote é pois ética e intelectualmente desonesto porque, na melhor prática estalinista, deturpa e reescreve as palavras de Álvaro Cunhal e ignora deliberadamente a verdade factual de quem defendeu a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Mas é também um ato de cobardia. Ao descontextualizar as palavras do antigo líder comunista, redigidas há mais de 70 anos, Gonçalo Portocarrero sabe que não será contraditado simplesmente porque o autor já cá não está para se defender e repor a verdade.
NUNO SARAIVA
Hoje no DN

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