Que a Vila de Freamunde foi elevada a Cidade. Vila desde treze de Junho de mil novecentos e trinta e três andou com esse estatuto até dezoito de Abril de dois mil e um. A dezanove de Abril desse ano ganhou o estatuto de cidade. Como em tudo há quem concorde e discorde. Era favorável se o progresso correspondesse a esse estatuto. Parece que com a elevação a cidade Freamunde parou no tempo.
Promessas e mais promessas e Freamunde não ata nem desata. Prometeram o arranjo do Centro Cívico e já vão uns anos que se alagaram as “lojinhas” e tudo contínua na mesma. Aliás! Pior. O abandono das pessoas do Centro Cívico é uma realidade e cidade que perde o seu centro é como uma pessoa perder o seu coração: morre. É o que infelizmente vai acontecendo. Faço estas críticas com mágoa. Há quem pense que sinto prazer. Nada de mais errado.
E, como prova disso, hoje relembro o aniversário de Freamunde como cidade. Não tinha efeméride alguma para descrever esse dia. Há tempos escrevi um texto - “Nasceu a menina” - aqui no meu blogue, do livro “CONTANDO 18 CONTOS” da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, texto esse de Rosalina Oliveira, uma figura de relevo da cultura Freamundense, o qual reproduzo neste dezanove de Abril de dois mil e treze.
Nasceu a menina:
“Martinho Ar-Azul era o mais pequenino dos suevos que residiam no lugar de S. Martinho, por entre pedregulhos e arbustos e águas do charco a reluzir ao sol. Vagueava sobre o céu azul, a observar o voltejar dos pássaros e as rãs que coaxavam, naquela poça namorada pelo sol e pela lua.
Às vezes, saltitava de pedra em pedra, ou aninhava-se junto das tocas dos grilos, fazendo-os vir à superfície. Ou olhava o céu imenso, envolvido na ternura do azul que lhe atravessava o peito e o fazia ofegar.
Era filho do suevo Águas-Limpas e da Celta Cor-do-Céu que se perturbavam com o seu aspecto, por vezes, meditabundo, a olhar o ar e o solo, como se não houvesse horizonte à sua frente.
- Pareces-me triste, Martinho Ar-Azul. Andas de lado para lado e não olhas de frente. Diz-me o que se passa contigo, meu menino - pediu a mãe num dia de Primavera dourada, ajoelhada numa rocha aborregada pelo Inverno.
- Ouve, mãe, eu vejo o nosso povo a descer para o vale, onde não há este céu aberto, a descer sobre nós. E eu não queria descer….
- Ainda ninguém te disse que nós também iríamos descer. Nós também apreciamos as alturas, o céu acariciante sobre nós, as pedras volvidas e fendidas pelos tempos e homens. Mas, pensa bem, a planura é mais fértil e mais ampla. Ali, há espaço para o cultivo das plantas e o apascentar dos rebanhos. Aqui, o vosso futuro está entalado entre os arbustos e o charco, entre a bruma matinal e o escurecer da tarde.
- Queres criar ovelhinhas para as matares, para lhes apertares as tetas e sorveres - lhes o leite? - Interrogou Martinho Ar-Azul, num tom pouco agradável.
- E de que vivemos nós? Já aqui há aquelas cabras grandes que nos fornecem os filhos e o leite, com que te fazemos crescer e ao teu irmão Lago-Mundus.
Martinho Ar-Azul olhou bem a mãe de frente, fez rodopiar depois os olhos pelos arbustos com uma lágrima já de saudade e pôs-se a olhar o vale, pejado de flores douradas, onde pousavam pássaros azuis e borboletas multicolores. Mergulhou um pouco em si e retorquiu:
- Mãe, a vida lá em baixo deve ser mais fácil, eu sei. E a vida tem de crescer como eu cresço e me vou mudando. Vamos também. Ensina-me a ajudar-vos a desbravar a terra, a cuidar dos animais, a vivermos melhor. O meu irmão já é crescido e eu sinto-o a afundar-se, neste charco de águas paradas.
Era à espera de um dia assim que estava a mãe. A partida não tardou. Fizeram as trouxas e assentaram num local plano, rodeado de flores, de cheiro a terra e a paz. Arrastaram e fizeram deslizar pedras graníticas com que ergueram a sua casa e enceraram panos de linho que copularam a ramos e folhagem, pregados com estilete de ferro aguçados nas pedras mais duras. Era o tecto dum ninho que prometia mais futuro… mais surpresas.
Mas só os três trabalhavam. Lago-Mundus perdia-se a conversar com uma garota vizinha, uma rapariga loira que o encantou com a beleza que irradiava. Chamava-se Natureza Frede. Os seus pais acolheram com simpatia os novos residentes que vinham cansados dos altos pedregosos e da monotonia dos dias sempre iguais. Ajudaram-nos a arrotear um bocado de terra, com o calor das suas mãos e do seu coração.
Natureza Frede encarregou-se de ensinar a Lagos-Mundus a pegar no sacho e juntos cavavam a terra e olhavam o horizonte que se lhes prometia, mais ridente e mais azul. Martinho Ar-Azul seguia-os enlevado, na ânsia de os imitar, no apego à terra e ao futuro.
Rolaram tempos e a atracçaõ entre os dois foi-se consolidando e evoluiu para um sentimento mais forte que não passava ao lado dos que os rodeavam. A decisão de juntarem as suas vidas não demorou, com o assentimento de todos.
Apareceu por lá um dia, um clérigo de seu nome Martinho de Dume que quis abençoar a sua união e ensinar-lhes o caminho de Cristo. Martinho Ar-Azul ficava petrificado ao ouvir as suas pregações cheias de ternura dos céus e da limpidez das águas.
Martinho de Dume tinha erigido, com os suevos que permaneciam no alto, uma pequena capela, reflexo dos ensinamentos que trazia de outras paragens e do amor que lhe inundava a alma. Fez as duas famílias subir até lá. Era, de novo, Primavera. Os grilos cantavam nas tocas e os pássaros esvoaçavam em cânticos doces, em torno das suas cabeças. Lá dentro, o clérigo deitou-lhes água sobre a cabeça e consagrou a união. Martinho Ar-Azul estava fascinado. Estava embevecido.
O tempo foi rolando até que, um dia de sol-pôr, Natureza Frede anunciou a sua gravidez, perante o júbilo de todos que almejavam o prolongamento das famílias. Houve palmas e o rufar dos tambores. Até as árvores pareciam vergar-se e associar-se à festa.
A menina lá veio à luz do dia. Tinha a tez muito branca e os olhos azuis, cor do mar sereno. Foi Martinho Ar-Azul que lhe preparou o berço, com a ajuda do clérigo, que continuava a passar por ali para os ajudar a compactar a sua crença num Deus único e lhes transmitir os ensinamentos necessários à sua evolução.
- Que bom termos descido para o vale! - confidenciava à mãe o filho mais novo. A brisa morna dos tempos fazia esvoaçar os seus cabelos e lá de cima, vinham os acordes dos ninhos em melopeias de azul.
- E tu andavas tão apreensivo! Só estávamos à espera que te desprendesses daquele sítio inóspito e sugerisses a mudança… - disse a mãe, a Celta Cor-do-Céu.
O diálogo é interrompido com a chegada alvoraçada do casal, com a filha ao colo da mãe.
- Está na hora de darmos um nome à nossa menina - avançou Lago-Mundus – gostaríamos que fosse tu a sugerir, Martinho Ar-Azul. Estás encantado com a tua sobrinha, serás o seu padrinho…
O rapaz quis ocultar as lágrimas de contentamento e tapou o rosto já acossado pelas barbichas de adolescente. De repente, como se um raio o tivesse iluminado, atirou ao vento, o resultado da sua reflexão.
- Já sei… é filha de Lago-Mundus e da Natureza Frede, juntam-se as duas partes e fica Fredemundus.
- Óptimo – rejubilou a mãe – será a nossa paz e a nossa protecção. Tem o azul do padrinho encravado na sua pele branca que o tempo jamais irá conspurcar.
O baptizado realizou-se na capela do alto, num dos dias que Martinho de Dume ali regressou. Tocaram os sinos melodias doces e os pássaros, mais uma vez, fizeram procissão nos ares, adejando as asas fortes. Eram acordes da paz e da protecção. A menina crescia cada vez mais bela, cada vez mais terna, cada vez mais resplandecente. O padrinho seguia essa evolução, com orgulho e grande alegria. Ele próprio se tinha tornado num moço esbelto, sempre sensato, sempre vigilante.
- Fredemundus é um nome bonito, mas considero-o difícil de pronunciar, com pressa. Se concordarem, vamos chamar-lhe Freamunde - aventou o rapaz, num dia de reunião de família.
Todos aceitaram a sugestão e foi com esse nome que cresceu a menina, de cútis sempre alva, a fazer resplandecer pedaços que rasgava do céu azul.
Podem encontrar Freamunde, hoje, por aí, a namorar os plátanos ou a banhar-se nas águas do “rio”. Será imorredoura no coração de cada um de nós e dos vindouros. É a princesa encantada que norteia os nossos passos. Acarinhem-na, ela vem dos pedregulhos e das lutas tribais, cansada do percurso e dos homens.
Ela vem do tempo para vencer o Tempo.
É o lúmen que vem de S. Martinho.”