Dentro de seis dias vou à China. Agora, subo a colina da Ajuda afim de me despedir da minha avó. Faço-o sempre que viajo e, invariavelmente, ela recomenda: "Cuidado com o avião." É uma avó muito bela: pequena, seca, teias de rugas que se entrecruzam, só osso, sofrimento e coragem. Quando fiquei sem mãe ela descia ao bairro da cidade onde o meu pai e eu vivíamos, para verificar se estava tudo bem. "Comes bifes?, bebes leite?", perguntava repetidamente. Vou no Volkswagen, série 18, com dois óculos na retaguarda, prestações mensais de 10 escudos, o carro traqueja, estou feliz, talvez porque seja a quadra das festas, talvez porque é o meu primeiro carro, porque vou viajar e porque vou ver a minha avó. Talvez isso tudo.
O carro não dispõe de mudanças automáticas, adquiri-o em segunda mão, tenho dificuldade em mudar de velocidade, o motor regouga, vou fazer 24 anos, e sou o senhor do mundo. China, Cuba, a palavra revolução sempre me refulgiu no prestígio que comporta. Ainda hoje. E os nomes que a emolduram são os nomes de laços inalteráveis, mesmo que tudo depois se contorça e desmorone. Mao Tse-tung e Chu En-lai, Fidel Castro e Camilo Cienfuegos. Fidel, na Sierra Maestra, a ler L"esprit des Lois, de Montesquieu. Mao e a Grande Marcha. Tudo isto poderá ser esquecido?
O jornal onde trabalho conseguiu que viajasse para lá de Macau. "Escreve, sobretudo, o que sentires, não apenas o que vejas", recomendou--me o chefe da Redacção. Subo a colina da Ajuda, e a felicidade transborda de mim. Li os livros de Claude Roy e de Malaparte, e os impressionantes relatos dos padres jesuítas que chegaram além do sítio aonde vou. E levo comigo a Bíblia, oferta de um tipógrafo anarquista, Eurico Ventura, que me ensinou a transcendência do homem e a grandeza daquilo que desconhecemos.
Uma vez, para tranquilizar a minha avó, disse-lhe que ia viajar, sim, mas desta vez de barco. Aflita, respondeu-me: "E se um avião cai em cima do barco?" Sorrio, no interior do Volkswagen, comovido com a genuinidade de uma mulher que passou por tudo o que de áspero a vida tem para oferecer e nunca perdeu a candura nem a capacidade de se espantar.
Reparo, agora, a meio da calçada, que na leitaria do Zenida montaram um rectângulo e que numerosas luzes coloridas iluminam o estabelecimento. Surpreendente para quem como o Zenida é um unhas-de--fome, e aquele gasto de electricidade poderia parecer-lhe desnecessário por supérfluo. Ocasionalmente, os ventos do Norte pareciam transfigurar a colina, e o palácio alargava as sombras temerosas. Já não há esses ventos, é estranho como tudo muda, penso agora ao pensar na minha avó, ao chegar junto dela, engelhada e frágil. Olha-me, beijo-a, pega-me na mão, coloca na palma um objecto redondo, uma moeda de 5 escudos. "É para a tua viagem." Ainda tenho a moeda. Está aqui: veja-a.
Tudo isto aconteceu?
Tudo isto aconteceu?
Baptista Bastos
No DN de hoje
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